Com base no ensino de Jesus em Mateus 22.15-22, cremos haver uma distinção entre Igreja e Estado, que chamamos de princípio da separação entre a Igreja e o Estado. Entretanto, a compreensão e a aplicação desse princípio enfrenta duas grandes dificuldades: a primeira é que no ambiente da Bíblia não vemos esta distinção. Tanto Israel como os povos que com ele interagiam eram nações hierocráticas, em que o poder político era uma derivação natural da revelação divina e à luz dela devia ser exercido e julgado. Não havia separação entre religião e Estado. É grande o abismo sócio-político entre nós e os tempos bíblicos, e isso contamina nossa hermenêutica. Assim, continuamos a repetir “Feliz é a nação cujo Deus é o Senhor”. A segunda dificuldade é que na fronteira das relações entre a Igreja e o Estado há zonas “cinzentas”, com justaposição de interesses e grande potencial de conflito. “A igreja concebe a si mesma como ‘unidade dialética’ de um ser ao mesmo tempo transcendente ‘espiritual’ e imanente ‘profano’. Seu paradoxo está em ser simultaneamente histórica e escatológica, espiritual e externa, divina e humana, social e, não obstante, transbordando e transcendendo todas as estruturas sociais e históricas do mundo.” (Joachim Matthes, Introdución a la Sociologia de la Religión, vol II, p.197). A secularização ou laicização crescente do Estado levou-o a regulamentar (alguns diriam “invadir”) áreas da vida do cidadão antes reservadas ao domínio da religião, como as relações familiares. Nas nações ocidentais, cuja cultura é formatada pela tradição judaico-cristã, este é um sério problema. É real a tensão entre sermos cidadãos do Estado e cidadãos do Reino de Deus. Nos primeiros três séculos de vida da Igreja, sua separação do Estado estava claramente delineada, pela simples razão de que ela estava em oposição a César, isto é, sua fé não era a fé do Império Romano. Mas, à medida que as duas “fés” passaram a se identificar, o que era de Cristo passou a ser de César, e vice-versa. Voltamos a ter o Estado hierocrático que Jesus quis abolir. A igreja, então, mergulhou lentamente num processo de promiscuidade abjeta com o poder temporal, durante a chamada “Idade das Trevas”, que terminou somente com o Renascimento e a Reforma Protestante. Esta teve um vertente principal, que produziu o luteranismo, os reformados, o anglicanismo e outros, e uma vertente secundária, a Reforma Radical, que produziu diversos grupos anabatistas e separatistas. Infelizmente, a corrente principal da Reforma perpetuou o Estado hierocrático, com o que redesenhou-se a Europa, que se dividiu em Estados católicos e protestantes. O moderno princípio da separação entre Igreja e Estado surgiu no seio da Reforma Radical, que o derivou do seu conceito de fé e igreja. Fé é algo que se exerce por decisão pessoal, voluntária e conscientemente. O batismo infantil não tem nenhum valor para a salvação, que é uma obra da graça de Cristo e precisa ser aceita por uma pessoa em condições de fazê-lo. Igreja é a comunidade dos regenerados, que a ela se unem voluntariamente, sob a única condição de professarem a fé e serem batizados, com a finalidade de cultuar a Deus, amar e servir uns aos outros e exercer mútua edificação e disciplina. Nenhum cidadão torna-se cristão por nascer de pais “cristãos” numa nação “cristã”, mas por aceitar livremente a Cristo e unir-se voluntariamente a uma igreja local. Não há nação cristã, mas igrejas cristãs ou povo cristão. O Estado é uma coisa, a Igreja é outra, e o cidadão tem liberdade de crer ou não. Isto é radicalmente diferente do que pensavam Lutero, Calvino, Zuínglio, João Knox e outros, e, é óbvio, levaria à perseguição. Os radicais pagaram caro por suas convicções. Os batistas, surgidos décadas mais tarde neste cenário, são, quanto a este princípio, herdeiros da Reforma Radical, e não da corrente principal. John Smyth e Thomas Helwys, líderes co-fundadores da primeira igreja batista de que se tem notícia, defenderam a liberdade religiosa em seus escritos de 1611/1612 (Zaqueu Moreira de Oliveira, Um Povo Chamado Batista – História e Princípios, Recife, 2010, pp. 55/56). Um pouco depois, na América, Roger Williams e John Clarke, banidos da colônia de Massachussetts Bay, onde os congregacionais eram a igreja oficial, fundaram o primeiro território do mundo onde se praticou a liberdade religiosa, a Colônia de Rhode Island. Em 1644, Williams escreveu “The bloody tenent of persecution” (O princípio sangrento da perseguição), defendendo a separação entre Igreja e Estado ( Zaqueu Moreira de Oliveira, idem, p.78). Batistas como John Leland (1754-1841) influenciaram diretamente os pais da Revolução Americana a incluir na Constituição as dez emendas conhecidas como Declaração dos Direitos (1789), das quais a primeira diz: ”O Congresso não emitirá qualquer lei aprovando religião oficial ou proibindo o livre exercício da religião.” Sobre ele Zaqueu Moreira de Oliveira diz o seguinte: “Leland foi o mais proeminente pregador batista em Virginia, no período da Revolução. Dentre vários outros escritos sobre liberdade religiosa, João Leland afirmou: ‘A coisa mais importante em minha vida é salvar almas. O solo mais fértil no qual almas podem ser atraídas para Cristo é o solo da liberdade religiosa. Quando homens são livres para crer ou não crer, eles podem livremente aceitar e viver o amor de Deus. Mas quando o Estado tenta ajudar a religião, ele inevitavelmente controla a prática religiosa e destrói a resposta livre do povo, pelo que poucas almas são salvas.” (Um Povo Chamado Batista, p.84). Conhecidos teólogos batistas americanos, como Strong e Mullins, que influenciaram a formação teológica dos batistas brasileiros, defenderam claramente este princípio: “As leis de Cristo, segundo as quais os crentes unem-se em igrejas, podem ser resumidas da seguinte maneira: (....) a liberdade da consciência do indivíduo e a total independência entre a Igreja e o Estado.” (Augustus Hopkins Strong, Teologia Sistemática, Vol II, p.639); “O Novo Testamento condena qualquer tentativa de subjugar a igreja a uma outra ou a um conjunto de igrejas, ou tornar a Igreja uma criatura do Estado. A liberdade absoluta da consciência subjugada a Cristo tem sido sempre um princípio dos batistas e do Novo Testamento.” (idem, ibidem, p.651). Entre os princípios batistas, Mullins citou “O axioma moral: O homem, para ser responsável, deve ser livre.”, e “O axioma religioso-cívico: Uma Igreja livre num Estado livre.” (E. Y. Mullins, Os Axiomas da Religião, p.82). Referindo-se a eles, Mullins diz: “Tanto do seu lado político como do seu lado religioso, a doutrina da separação da Igreja e do Estado tem toda a razão de ser. A liberdade civil e a liberdade da alma proíbem por igual a sua união.” (idem, ibidem, p.189). Entretanto, trata-se de um princípio frágil (veja Walter B. Shurden, The Baptist Identity – Four Fragile Freedoms), pois sofre bombardeio constante, por um lado daqueles que não são herdeiros da tradição radical/batista, e por outro lado, dos que, mesmo sendo dela herdeiros, renegam-na ou ignoram-na. Em ambos os casos, creio que a causa é o estranho saudosismo da teocracia do Antigo Testamento e o desejo liberticida de impor seus itens de fé a todos os demais seres humanos. Como dizia Roger Williams “cristianização não faz cristãos” (título de um livro sem menção do autor, mas atribuído a Williams, segundo Zaqueu Moreira de Oliveira, Um Povo Chamado Batista, p.79). No início de 2010, o Conselho Estadual de Educação do Estado do Texas, EUA, dominado por evangélicos fundamentalistas (entre eles, batistas), resolveu retirar dos livros textos de História autorizados a menção à luta histórica dos batistas e outros americanos pela separação entre Igreja e Estado, por entenderem que as crianças precisam aprender que os EUA são “uma nação cristã”. No Brasil constatamos o mesmo discurso. Por isso, torna-se urgente difundir, estudar e enfatizar profundamente nas igrejas, associações e convenções, a nossa história e os grandes princípios batistas, razão da nossa existência como denominação. Honremos nossa herança histórica, ou renunciemos ao nome “batista”. por SYLVIO MACRI em prazerdapalavra.com.br
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Dezembro 2024
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